Capitulo 2

Estava sentado nos degraus frente à porta da minha casa. Olhei em volta. Voltei a olhar. A minha casa estava como que plantada no meio de um deserto. Não. Fechei os olhos, abanei a cabeça e abri-os novamente. Repeti este procedimento duas, três, quatro, cinco, nem sei quantas vezes, perdi-lhes a conta. A minha casa estava rodeada de areia, por todos os lados. Onde estavam os prédios altos? Estava eu metido numa caixa mágica a padecer de alucinações? A demência estava a tomar conta demim? Onde estava eu? O que era sonho? O que era realidade?
Enterrei a cabeça sobre os joelhos, deixei-me estar ali por um bom bocado. Não tinha coragem de me levantar e a porta atrás demim continuava fechada. Desenterrei a cabeça com os olhos ainda fechados e encostei a cabeça à porta. Olhei para cima. O sol brilhava forte sobre mim. O céu era violeta. Nunca tinha visto algo assim. Totalmente violeta. Pleno de uma luz forte, não agressiva, de uma natureza doce até. Fiquei com os olhos pregados ao céu, maravilhado. Que mais me aguardaria o olhar? Baixei os olhos. Era inacreditável. Á minha frente seguia um trilho verdejante. Uma espécie de tapete de relva, ladeado por ziliões de grãos de areia. Seria por ali que eu deveria seguir. Olhei para o fundo e se fim existia, não o conseguia avistar. Contudo, ao longe um ponto se movimentava em minha direcção. Vinha a um ritmo calmo e coordenado e, pouco a pouco, me fui apercebendo de um suave bater de asas. Aproximava-se mais e mais. Até que avistei aquilo que eu reconhecia por uma coruja. Enorme, cada vez maior à medida que se aproximava demim.
Intuitivamente estendi o braço e ela pousou em mim, elegantemente. Ficámos face a face. O que senti foi algo tão forte, tão intenso, tão precrustrador. Os olhos dela pregados em mim, fixos, profundos, perspicazes. Senti-me lido. Despido. Sem qualquer defesas, sem qualquer sentimento ou necessidade de alerta.
De um momento para o outro ela levantou voo e foi pousar no portão de ferro da minha casa, numa posição intermédia entre mim e o tapete verde, que se estendia à minha frente. A cabeça dela parecia rodar sobre ela mesma, olhando tudo à sua volta e parando os seus olhos escuros, de quando em quando , sobre mim. Parecia inquieta, ansiosa. Levantei-me. Puz uma alça da mochila sobre o ombro e desci lentamente as escadas. Cheguei ao portão de ferro forjado e abri-o com facilidade. Isto surgiu-se-me estranho. Aquele portão exigira sempre da minha parte alguma insistência e estava há muito empenado. Passei para o lado de lá e fechei-o com cuidado. Olhei para ela. Lá estava ela imperturbável, olhando para mim. Dei meia volta sobre mim e fiquei de frente, para o caminho que me aguardava. Dei uma passada, duas passadas a medo. E ela, sem quase eu sentir, pousou-me no ombro vazio. Era estranho como um ser tão imponente e de dimensões tão largas, não me pesava no corpo.
Com ela num ombro, com a alça da mochila noutro, segui caminho.

Capitulo 1 parte 2

Com cuidado e firmeza, uma mão segurava a minha. Era suave e rugosa aquela mão. Aquecia a mão que dela pendia, a minha. Não me recordo de olhar para o lado, só olhava para o caminho que me era familiar. As paredes brancas com alguns riscos de lápis de cera, os posters pendurados na parede, as prateleiras onde desfilavam cuidadosamente alinhados as miniaturas dos carros antigos que pertenceram - em tempos idos - ao Papá. E sorri ao lembrar-me de como ele, de quando a quando, se dirigia ao meu quarto com os mais eloquentes pretextos, só para se certificar que eu ainda não tinha danificado - com a ingenuidade bruta das minhas brincadeiras - o seu Commodore Coupé, o Porshe spyder, a Ford Woody, o carocha ou o cadillac eldorado. Alinhava-os sempre cuidadosamente, fazendo-lhes revista discretamente, como quem limpa o pó, dizia uma ou duas palavras inofensivas e lá seguia a sua vida.
Seguimos caminho e lá fomos até à porta de casa. Para onde me levaria aquela mão? Queres fazer uma viagem? - perguntou-me. Era o que eu mais queria. Evadir-me demim e da realidade, conhecer novos sítios e pessoas diferentes, experimentar novos sabores, sentir novas texturas, inalar novos odores. A viagem que vais fazer é ao centro de ti. Ao centro demim? Como podemos nós viajar ao centro de nós mesmos? Como podemos partir de nós com destino a nós? É como não sair do lugar e rodar em torno de nós mesmos, num ponto de partida e chegada invariávelmente coincidentes. Não há coincidências. A maior viagem que podemos fazer é a viagem ao interior de nós mesmos. Essa é a viagem mais maravilhosa e enriquecedora que alguma vez farás na vida. Não te apoquentes, que muito há para ser visto e conhecido. É só tu quereres crescer. Os caminhos serás tu a escolhê-los e a vivê-los. Escolhe livremente e vive. Aproveita tudo o que respirares.
Passou-me então a mochila para a mão. Era de pele. Já envelhecida. Muitas viagens já deveria ter feito. Tinha dois bolsos laterais, e um bolso grande à frente. Fechava com uma aba larga e um fecho de metal já meio enferrujado. Peguei-lhe e estava vazia. Para que quereria eu uma mochila vazia? Sem perguntas coloquei-a às costas e a mão largou-me e passou-me um cachimbo. Segurei-o com as duas mãos. Era o cachimbo do meu avô. O meu tesouro. Olhei então em frente e lá estava ele junto à porta. Era o meu avô, sempre ali tinha estado. Apontou-me com um sorriso a porta e parecia tão feliz com o caminho que me apontava que eu caminhei para ele sem receio, num compasso calmo e ritmado. A porta foi eu quem a escancarou e do lado de lá vinha tanta luz que fui como que obrigado a fechar os olhos. Pousavam atrás demim duas mãos nos ombros. Estarei sempre no teu coração, lembra-te que as tuas asas servem para voares.
E foi assim que parti, para a maior aventura da minha vida. Sozinho, sem mapa, sem bússola, sem guia, para iluminar caminho. Teria que me bastar a mim mesmo, sondar eu os caminhos que me levariam ao destino indefinido mas necessário.
A porta fechou-se atrás demim, não sem antes eu ter tempo para guardar na memória o mesmo sorriso que me confortou tantas vezes, preso no colarinho branco impecavelmente engomado do meu avô. Chegara a hora de partir acompanhado demim mesmo.

Capítulo 1

Estava deitado. Mantinha-me de olhos fechados, plenamente consciente do espaço que me circundava. Os punhos estavam fechados junto ao corpo. Estava para ali assim. Casmurro no meu estado hirto. Se abrisse os olhos a vida teria que continuar fora demim. Neste momento essa mesma vida só respirava de quando a quando, de cada vez que o pensamento " não podes pensar em nada" assaltava a minha mente propositadamente vazia. Estava exausto. Farto deste exercicio constante que reflectia a minha tentativa inócua de afastar a realidade. Mas era o melhor que tinha agora.
Apertei ainda mais os olhos. Eu não queria ver. Não queria sentir. Ou talvez quisesse e tivesse medo. Apurei a orelha. Do lado de lá da porta passos silenciosos. A porta abriu-se. Senti uma presença frágil perto demim abrançando-me, com uma força entrecortada por pequenos mas fundos soluços. Era a minha mãe. Do nada vi-me puxado para cima, com os braços dela sobre mim, a cara escondida no meu ombro. Olhou para mim. Bem para o fundo demim e disse: " Ele partiu".
Era imensamente injusto. Nós ainda tinhamos tantas aventuras juntos, tantas paisagens que ele prometera mostrar-me, tantas lições que prometera partilhar comigo, caminhos, sonhos. Partiu sozinho para a derradeira viagem, sem mim. Era injusto e totalmente despropositado, pensava eu do alto dos meus 8 anos.
Segundos, minutos, talvez horas depois ainda estava ali no quarto sozinho. Olhava agora pela janela. Pus os pés no chão. Encaixei-os nos chinelos de bombazine castanhos e arrastei-me até porta. Abri-a. A casa estava silenciosa. Fui até ao quarto dele. Confirmar o principio da inexistência. Ele não estava lá. A cama estava feita, os estores semicerrados, e no ar lá estava o tal aroma que sempre o acompanhava. Na cabeceira descansava um livro de capa gasta e por cima dele repousava o cachimbo. Passei a mão pela cama. Alonguei-a e sentei-me. Olhei à volta.
Ele ainda lá estava. Perdurava em cada uma das coisas que lhe tinham pertencido. Em cada fotografia, em cada pedaço de madeira envelhecido, em cada estátua ou em cada molho de cartas presas com atilho verde escuro ou em cada livro desalinhado na estante. Acabei por ali adormecer. Deitado de lado, sobre a cama. Ao longe senti pegarem-me ao colo, com cuidado. Fecharam a porta atrás demim e eu sorri, num sorriso para os meus adentros. O meu avô estaria sempre ali. Naquilo que nos tinha deixado. Os meus olhos pesavam, cansados e eu sentia-me cada vez mais profundo em mim. Deixei-me ir e adormeci.

Prefácio

O braço dele pousava ainda no meu ombro. Ao longe soava uma pequena trovoada, afastando-se, cada vez mais distante. Tinha sido assim toda a noite: rimbombavam trovões por entre os prédios cinzentos e esguios que contornavam a minha casa. Ele deixara-se ficar ali comigo, assim em silêncio. Partilhava comigo a visão escura e forte que, ao mesmo tempo que me assustava, me hipnotizava, impedindo-me de me afastar da janela.
O sala permanecia em silêncio, fria, iluminada apenas por uns pequenos clarões que se assenhoravam descaradamente e sem permissão, dum espaço que não era deles. Enquanto a tempestade se ia afastando e ele continuava absorto , no seu posto de observação, tornei o meu pescoço para ele. Era alto e belo o meu avô. O cabelo grisalho ondulava-lhe a cara, suavizando-lhe a expressão de um rosto já envelhecido. Ao canto da boca pendia o cachimbo, com o qual me parecia brincar desde sempre, entre o farto bigode. As roupas matizadas de suaves acastanhados, o colarinho amarelado a espreitar impecavelmente engomado.
Devolveu-me o olhar. Sorriu-me travesso. Quando o meu avô sorria assim parecia que nunca tinha envelhecido. Era exactamente o mesmo sorriso que o Óscar se socorria de cada vez que ia à padaria da Dona Rosário e puxava das mãos ágeis para furtar um papo seco acabadinho de colocar na cesta, a palpitar do quentinho do calor da cozedura.
Apontou-me com o olhar, rodando novamente a cabeça para a janela. E lá estava ele. O Arco-íris. Vagueava pelo meio das nuvens, lá ao longe. Fresco e e afoito, por entre as resistentes gotas de chuva e o sol brincalhão que nelas tropeçava. O meu avô cachimbava calmamente, invadindo-se o ar de um odor almiscarado, intenso e aromático que se afundava pelas minhas pequenas narinas. Eu fechei os olhos e por momentos concentrei-me na atmosfera do momento. Já passaram muitos anos desde esse dia, mas posso jurar que ainda oiço o seu suspiro saudoso por entre o aroma rico temperado de baunilha, noz e canela e. a tosse teimosa . As palavras foram as últimas que lhe ouvi: Um dia também alguém casará o céu com a terra, e então o meu caminho não terá sido em vão.